CEDOCH

MOGI MIRIM 1903: O CARNAVAL DO BARRO, DO LUTO E DA CRÍTICA – PARTE IV

IMG_7430 - Mogi 1903 - Carnaval - Anúncio - Mascaras

Por Thiago Henrique – pesquisador, historiador e colunista

O Carnaval de 1903 em Mogi Mirim não entrou para a história exatamente por seus folguedos. Foi um ano chocho, desanimado — talvez reflexo da tristeza iminente com a morte do Coronel Venâncio, que viria a falecer no dia 10 de fevereiro. Chovia, chovia muito, o suficiente para cancelar a aguardada estreia do Circo Cruz. Imagine a decepção das crianças — e dos adultos — privados de palhaços, acrobatas e da ilusão temporária que só um picadeiro pode oferecer. Nem a serpentina escapava da umidade. Venâncio Ferreira Alves Adorno nasceu em Mogi Mirim, no dia 16 de fevereiro de 1838, vindo a falecer aos 64 anos. Republicano, prestou serviços relevantes ao município, bem como ao Estado de São Paulo. É de sua doação o terreno onde está situada a escola que leva seu nome, Coronel Venâncio — a primeira do município. Seu último cargo foi o de delegado de polícia. Morreu no dia 10 de fevereiro de 1903. Segundo o jornal A COMARCA, a notícia de sua morte espalhou-se rapidamente. Alguns munícipes chegaram a correr até sua residência para confirmar se era verdade. Ao ler cada linha da publicação daquele dia 10, percebe-se com clareza a comoção popular que se instaurou. Natural, portanto, que tal perda tenha afetado o clima carnavalesco — embora não o suficiente para impedir parte da população de sair às ruas para comemorar.

Apesar do marasmo da folia, o comércio local viveu dias de glória. Os lojistas, segundo os registros da época, fizeram o “negócio da China”. Em edição de 26 de fevereiro de 1903, o jornal A COMARCA publicava, na seção “Carnaval”, que o evento “passou desanimaçíssimo”, pois “insignificantes números de pessoas fantasiadas apresentaram-se nas ruas”. A matéria informa que duas bandas de música tocaram no coreto, na Praça da República e em frente à farmácia do Chagas. Neste ponto, houve “grande afluência do povo”, que se divertiu com águas, baldes, jarras e barris — típica brincadeira do Entrudo. Parece que, mesmo sem muita folia, ninguém quis passar o feriado sem uma roupinha nova, um adereço vistoso ou um perfume importado. Sapatos, botinas, chinelos e elegantes sandálias podiam ser adquiridos na loja “A Bota Elegante”, situada na Rua Padre Roque (infelizmente, o número não foi mencionado no jornal). A proprietária era Maria Stavale. Em Mogi Mirim, afinal, sempre se prezou pela aparência — mesmo que as calçadas estivessem intransitáveis e os muros, decrépitos. A cidade, coitada, era um quadro impressionista em tempo de enxurrada: tudo borrado, tudo escorregadio. Foi justamente essa sujeira que motivou uma nota ácida publicada na edição de 1º de março de A COMARCA. O jornal, sem papas na língua, interpelou o intendente (equivalente ao prefeito) sobre a “porcaria” que tomava conta dos passeios públicos e muros da urbe. Uma crítica legítima, embora — convenhamos — esperar limpeza durante o Carnaval talvez fosse otimismo demais. O povo queria pular, mas escorregava no barro; queria dançar, mas tropeçava em pedras soltas. A folia resumia-se a desviar de poças e segurar a barra do vestido. Afinal, que Carnaval é esse, em que o circo não estreia, a cidade fede e a única alegria vem do tilintar das caixas registradoras? Com seu humor agridoce e suas contradições seculares, o povo quis festa, o governo entregou lama; casas sujas; muros caídos; o comércio lucrou, mas a cidade apodreceu em silêncio. Uma dança mal coreografada entre o interesse público e o privado.

Tal parágrafo, talvez para o caro leitor, tenha parecido um tanto confuso. No entanto, tudo o que se narrou — reitere-se, sim, reitere-se de forma propositalé pura realidade. Dias antes do início do Carnaval e até mesmo da morte do Coronel Venâncio, o jornal A COMARCA já publicava: “Ao Sr. Intendente: temos pedido a atenção para o feio aspecto que apresenta esta cidade, com seus muros e taipas sujos, esburacados, em ruínas (…)”. A matéria é extensa, e não me alongarei — mais do que já me alonguei — ao prezado leitor. Em 1903, o Carnaval não teve brilho, mas ofereceu um retrato fiel de uma cidade que cambaleava entre o progresso e a desordem. E se a alegria não correu solta pelas ruas, ao menos o sarcasmo começou a dar seus primeiros passos — com a imprensa afinando o tamborim e batendo de frente com os mandachuvas.

Entre o chapéu do palhaço e o chapéu do intendente, o povo soube bem quem merecia as vaias naquele fevereiro molhado. Não se viveu apenas o luto por um coronel. Viveu-se o luto por uma cidade maltratada, escorregadia, abandonada. O povo foi às ruas — essas esburacadas e encharcadas. E ali, com o pé na lama e a alma no riso, reinou. Reinou o povo, reinou Momo. E ao intendente, coube-lhe, sim, a lama. Reformar-se-ia o cenário? Melhorar-se-ia a cidade? Ainda demoraria. Mas foi no luto e na alegria que se iniciou a marcha.

Post Relacionados