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ENTRE MOGI MIRIM E O HORROR NAZISTA: A JORNADA DE SBGNEW SIKORA

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Por Thiago Henrique – pesquisador, historiador e colunista

Por volta das 9h da noite de 27 de fevereiro de 1933, um incêndio paralisou toda a Alemanha. O Parlamento alemão, o Reichstag, começou a ser consumido pelas chamas de forma misteriosa. Desespero para muitos? Não. Alegria para uma parcela da população? Sim. Durante o incêndio, a pergunta que todos se faziam era: quem teria provocado tal ato e por quê? Nunca se chegou a uma conclusão definitiva. O que se sabe é que alguns comunistas foram presos e acusados de serem os responsáveis, embora houvesse quem suspeitasse que o próprio Partido Nazista estivesse por trás do episódio. Independentemente da autoria, o incêndio foi um catalisador para o fortalecimento do nazismo no país. O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), ou Partido Nazista, pregava o nacionalismo, o antiliberalismo e o anticomunismo. Com o apoio de grupos paramilitares e de uma parcela considerável da população, sua influência crescia rapidamente. Após o incêndio, a adesão ao partido aumentou ainda mais, com muitos se rendendo aos discursos do Führer. Naquela noite fatídica, o então primeiro-ministro Adolf Hitler observou as chamas consumindo o parlamento com satisfação, chegando a dizer: “Este incêndio é apenas o começo.” No dia seguinte, conseguiu aprovar um decreto de “proteção ao povo e ao Estado”, que suspendia as liberdades civis, colocava partidos políticos na ilegalidade e dava poderes excepcionais à polícia para prender suspeitos. A partir daquele momento, a democracia alemã deixou de existir. Até aqui, nada disso é novidade para aqueles que conhecem o desenrolar dessa história e o que Hitler fez a partir daquele momento. Não pretendo descrever o horror nazista em detalhes, mas, para escrever esta coluna, recorri novamente ao meu acervo pessoal de biografias. Entre as obras, encontrei a última biografia lançada sobre Hitler, talvez a mais abrangente até hoje. Tenho outras, mas nenhuma supera Hitler, do historiador Ian Kershaw. Precisei reler alguns trechos para conseguir chegar até aqui. Esta coluna levou mais de oito meses para ser concluída. Durante uma conversa descontraída e cheia de detalhes, como sempre, o pesquisador Valter Polettini sugeriu que eu escrevesse sobre Sbgnew Sikora. Sem saber quem ele era, comecei a perguntar mais sobre ele. Valter, que era amigo íntimo de Sikora, narrou a epopeia de sua vida, marcada pelo horror nazista até sua chegada a Mogi Mirim. Desde essa primeira conversa, com a ajuda do Valter, mergulhei em uma longa pesquisa (que, infelizmente, não vai caber nesta coluna, pois a história do mesmo, ainda merece um trabalho acadêmico, quiçá um livro biográfico). Por muito tempo, não me senti pronto para escrever sobre o assunto, mas, finalmente, chegou o momento.

Sbgnew Sikora nasceu em 5 de outubro de 1937, na cidade de Wyrzyak, Polônia, filho de Josef Sikora e Marta Sikora. Seu pai, um renomado engenheiro especializado em estruturas de ferro e aço, viu sua carreira sofrer uma reviravolta com o avanço nazista. A cidade natal de Sikora, Wyrzyak, viveu um período de paz até 1933. Com a ascensão do nazismo, iniciou-se uma onda de sentimento antipolonês e a perseguição de ativistas locais. Durante o início da Segunda Guerra Mundial, Wyrzyak foi um forte centro de resistência contra os nazistas, mas essa resistência não durou muito. Em 1945, a cidade foi capturada e destruída em 90%, com quase nada restando, inclusive do centro histórico. Durante a invasão, Josef Sikora foi capturado e recrutado à força pelas tropas de Hitler para trabalhar na Alemanha, devido à sua reputação como engenheiro de excelência. Tudo indica que Josef e outros engenheiros recrutados foram submetidos a condições de trabalho forçado e, possivelmente, escravidão. A resistência silenciosa desses engenheiros levou a uma situação perigosa, que mudou para sempre a vida de Josef e de sua família. Em certa ocasião, um retrato de Hitler foi entregue ao grupo, e, em tom crítico e velado, alguém perguntou se a imagem deveria ser colocada no paredão (alusão a fuzilamento/enforcamento) ou simplesmente pendurada. Essa provocação chegou aos ouvidos de Hitler, e os envolvidos foram convocados, o que prenunciava consequências fatais. Josef, ciente de seu provável destino, conseguiu fugir com a roupa do corpo para a Finlândia. Sobre o paradeiro dos outros engenheiros, nunca mais se soube. Josef deixou sua família sem avisar para onde ia, reaparecendo seis meses depois. Em uma operação clandestina e extremamente arriscada, ele retornou para resgatar a família. Ao refletir sobre esse episódio, não consigo deixar de imaginar, com os olhos embargados e o coração apertado: como foi esse resgate? Qual foi a extensão do perigo enfrentado por Josef em sua luta para salvar aqueles que amava?

Durante a fuga, a tragédia deixou marcas indeléveis. Um dos filhos do casal adoeceu e faleceu, sendo enterrado às pressas à beira de uma estrada. O casal tinha dois filhos homens e uma filha. Sikora presenciou o “velório” improvisado do irmão e o sofrimento de seus pais, ao mesmo tempo que precisavam agir com pressa para evitar serem capturados. Da Finlândia, a família seguiu para a Itália, depois para Nova York e, por fim, chegou ao Brasil. Este, no entanto, não era o destino originalmente planejado. A intenção inicial era ir para à Argentina, mas um incidente inesperado mudou os planos: aos 8 anos de idade, Sibgnew Sikora desapareceu com alguns coleguinhas na floresta amazônica por três longos dias. Esse episódio fez com que seus pais perdessem o navio que os levaria à Argentina. Estabelecida no Brasil, a família Sikora recebeu um convite do empresário Francisco Matarazzo para se mudar para São Paulo. Josef retomou sua carreira de engenheiro, contribuindo para importantes projetos, incluindo a projeção da Via Anhanguera. Sbgnew cresceu na cidade de Araras, onde conheceu Therezinha Assumpção, que mais tarde se tornaria sua esposa. Aos 16 anos, Sikora naturalizou-se brasileiro, com sua documentação assinada pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Formado em Engenharia, seguindo os passos do pai, ele foi contratado pelas Nações Unidas, onde participou da demarcação da fronteira entre o Brasil, a Venezuela e as Guianas. Em 1970, retornou a Mogi Mirim a convite do prefeito Adib Chaib para assumir a presidência do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto). Em 1973, casou-se com Therezinha e estabeleceu residência na cidade. Sbgnew dominava fluentemente sete idiomas: polonês, alemão, finlandês, italiano, inglês, português e esperanto, além de vários dialetos.

Sbgnew Sikora faleceu em 15 de dezembro de 2022, vítima de complicações de um AVC. Todas as pessoas com quem conversei e que o conheceram relataram a mesma coisa: era um homem sério, reservado, observador e com um olhar profundo. Ele negou inúmeras vezes falar sobre sua história ao pesquisador Valter Polettini, cedendo apenas depois de muita insistência e tempo. Não deixou nada escrito sobre sua vida, mas é certo que os acontecimentos que viveu deixaram marcas profundas e eternas. O que mais ele teria a contar? O que mais teria presenciado com seus próprios olhos, mas escolheu guardar em silêncio? É provável que a fonte mais direta de suas memórias fosse sua esposa, que, infelizmente, já não consegue lembrar de sua própria história, do passado que compartilhou com ele. Outra possível fonte seria sua irmã, Cristina, mas ela também não está mais entre nós, tendo tirado a própria vida.

Sua trajetória, marcada pela dor de um passado sofrido, raramente foi compartilhada, mas permanece como um testemunho de coragem e resiliência diante das adversidades. O nazismo, regime de terror e destruição, ceifou vidas, memórias e liberdades. Como um homem, como Hitler, segundo o biógrafo Ian Kershaw, foi capaz de, por meio de uma “linguagem expressiva, direta, vulgar e simples – compreendida pela maioria da plateia, com frases curtas e vigorosas”, conduzir multidões a uma satisfação quase orgástica? Kershaw descreve que seus discursos, inicialmente lentos, aumentavam gradualmente de tom até atingir o êxtase coletivo. Sbgnew Sikora foi o único, não nascido em Mogi Mirim, mas aqui residente, que viveu na pele esse período sombrio, carregando cicatrizes que o acompanharam por toda a vida. Foi difícil para mim chegar a este momento de escrita e, mais ainda, encontrar palavras para encerrar. Sinto uma vontade de continuar, de explorar mais, mas, ao mesmo tempo, uma hesitação, por não saber se ele gostaria de ter sua história exposta assim. Desde o instante em que ouvi essa narrativa, porém, soube que não poderia deixar de escrevê-la. Sua história precisava ser compartilhada, mesmo que parcialmente. É com lágrimas nos olhos que encerro.

Descansem em paz, Sbgnew Sikora, Josef Sikora, Marta Sikora, Cristina Sikora e seu irmão, cujo nome desconhecemos. Sbgenew Sikora, encontra-se sepultado no Cemitério da Saudade de Mogi Mirim, seu tumulo está localizado na quadra 46, sepultura 606, em um jazigo perpétuo. Atualmente consta no acervo do MAMM – uma obra de autoria do pai de Sikora.

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