Por Thiago Henrique – pesquisador, historiador e colunista
ENTRE O ENTRUDO E A MODERNIDADE
O Carnaval é uma das festas mais antigas da humanidade, com raízes que remontam às celebrações pagãs da Antiguidade e que, ao longo dos séculos, se transformou na manifestação cultural que conhecemos hoje. Nesse sentido, a palavra Carnaval, durante sua história, entoou um significado mais amplo e profundo. Um exemplo do final do século XIX refere-se a um estudioso russo chamado Bakhtin, que, naquele momento, resolveu estudar o carnaval francês. Para o estudioso, o Carnaval deveria ser visto como um conjunto de comportamentos, ao qual deu o nome de “carnavalização”. Isso mostrava que o conceito não estava apenas atrelado a uma festa, mas sim a um conjunto de celebrações, brincadeiras e comemorações. Vários foram os nomes atribuídos a essa festividade ao longo dos séculos, como carnelevarium, caramentran, carnisprivium ou carnavale, todos eivados do mesmo significado. Como mencionado na coluna anterior, até mesmo um Campeonato Brasileiro pode ser visto como um carnaval. No Brasil, essa festa adquiriu contornos próprios, misturando influências europeias, africanas e indígenas. Em Mogi Mirim, entre 1900 e 1930, o Carnaval passou por intensas transformações, refletindo as tensões entre tradição e modernidade, além das diferenças sociais que marcavam a cidade. Contudo, para que este abre-alas tenha começo, meio e fim, far-se-á mister explicitar e retornar à origem, ou quase.


Um fato curioso é que, durante a era iluminista, o Carnaval, que já existia, não se restringia a apenas três dias: por necessidades comerciais, durava uma temporada de janeiro até a Quaresma. Durante esse período, bailes e óperas suntuosas reinavam, eivadas de máscaras e fantasias, sendo a de “dominó” a mais famosa e intrigante, pois quem a trajava desejava ser visto como misterioso, preservando sua identidade. Contudo, a verdadeira ideia de um grande Carnaval surgiu em Paris no século XIX, com festas repletas de pompa e patrocinadas pela elite. Veremos, mais adiante, que, no princípio, Mogi Mirim também teve sua elite financiando o Carnaval e, principalmente, os bailes carnavalescos. Dentre as brincadeiras populares, destacavam-se serpentinas, confetes, lança-perfumes e, sobretudo, o “Entrudo”. Essa brincadeira, trazida pelos portugueses, tornou-se uma “mania nacional”. Consistia em molhar os desavisados com laranjinhas recheadas de água, mas não apenas água: usavam-se também alvaiade (pó branco usado em pinturas), vermelhão (sulfato de mercúrio), pólvora e outros materiais. Era uma verdadeira guerra que frequentemente humilhava escravizados e estrangeiros, sem que eles pudessem revidar. Pedro de Mattos, um dos maiores cronistas da história mogimiriana, relatou em suas colunas um Carnaval em que o Entrudo foi “medonho”: “As mulheres eram loucas pelo Entrudo. Grupos de senhoras e homens munidos de laranjinhas faziam ataques e, às vezes, feriam-se devido à impetuosidade da luta. Verdadeiro combate à água. Os pobres, que não podiam comprar laranjinhas, improvisavam seringas de taquara ou atiravam baldes d’água”. Com o tempo, essa prática foi sendo vista como humilhante. No livro “O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro” a ideia de entrudo “mesmo abnegada pela burguesia, ainda reinava nos rincões e principais cidades do Brasil. A brincadeira passou, cada vez mais, a ficar associada a um costume indigno. O entrudo foi acusado de imoral”. A partir de 1915, o jornal “A Comarca” passou a publicar anualmente alertas sobre a proibição do Entrudo, com ameaças de multas e prisões. Com a decadência do Entrudo, a festa tomou outros rumos, valorizando os desfiles de carros alegóricos, os bailes e os concursos de fantasia. Os primeiros bailes eram realizados em salões particulares, e os mais ricos frequentavam clubes como o Club 29, o Theatro São José, o Cinema Brasil e o Clube Recreativo. Na música, destacavam-se as bandas Tucurinhas, Sapos, Arranco Toco, Quebrados e as corporações Euterpe, União e Orquestra Portiolli. O que não faltava eram os famosos “autos” que levavam os sobrenomes de algumas famílias aristocráticas mogimirianas, esses, que serão ao longo da série detalhados na sua minuciosidade. A elite patrocinava as festas e desfilavam em carros ornamentados, enquanto o povo mantinha a tradição das celebrações espontâneas nas ruas.

O avanço da urbanização e as mudanças políticas também impactaram o Carnaval local. Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, o Estado passou a valorizar o Carnaval como uma festa nacional organizada. Mogi Mirim acompanhou essa tendência, aderindo às marchinhas e formalizando os desfiles. O período entre 1900 e 1930, portanto, marcou a transição do Carnaval mogimiriano: de uma festa desordenada e marcada por disputas de classe, passou a um evento mais organizado, com influências externas e o desejo crescente de ordem e espetáculo. Este tema, infelizmente, é pouco pesquisado. Muitos jornais do município apresentam apenas fotos (inclusive atualmente) com legendas superficiais, sem aprofundamento histórico. Livros sobre a história de Mogi Mirim, também não fogem dessa superficialidade, pois o tema nunca é de fato aprofundado, apenas se preocupa com o limbo do mínimo e sem aprofundamentos de fato. O pesquisador não pode se limitar a essas imagens e conclusões rasas; deve investigar o contexto e o significado por trás dos registros. Nos próximos capítulos desta série, abordarei como essa festa evoluiu nas décadas seguintes, consolidando-se como um dos momentos mais esperados do ano na cidade.