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22/10/2024 – MOGI MIRIM, 255 ANOS DEPOIS!

Rua

Por Thiago Henrique e Valter Polettini – pesquisadores e colunistas

Em 2024, Mogi Mirim comemora seus 255 anos de emancipação político-administrativa, uma longa trajetória que simboliza a resistência e a evolução de uma cidade enraizada na história do Brasil colonial. Contudo, apesar da pompa das comemorações, é necessário questionar o que realmente se celebra e como se celebra. O progresso da cidade ao longo dos séculos refletiu o desenvolvimento igualitário para todos os seus cidadãos, ou foi privilégio de poucos? Para ilustrar essa questão, podemos recorrer a algumas obras que discutem o tema “privilégio de poucos”. Um exemplo é “Coronelismo, Enxada e Voto”, do ex-ministro do STF, Victor Nunes Leal. Nesta obra notável, o autor explora a ideia do mandonismo, do poder político municipal e do patriarcalismo, em que o sobrenome representa status, poder e privilégio sobre os demais. A história de Mogi Mirim não foge a esse enredo. Embora poucos queiram admitir ou discutir esse tema, o município foi, de fato, construído sobre o privilégio e o luxo de famílias abastadas e dominadoras. Até hoje, muitos ainda não perguntam “quem você é“, mas sim “qual o seu sobrenome”, perpetuando a ideia de que o poder e a influência estão ligados a essas linhagens. O presente, afinal, carrega muito do passado. Outro exemplo importante é a tese de José Eduardo Pimentel de Godoy, “Dinastias Políticas Coloniais: Um levantamento na Câmara Municipal de Mogi Mirim”. Ao longo do trabalho, torna-se evidente o poder aristocrático e político de certos homens e famílias que dominaram e moldaram a história do município. Aqui, prevaleciam os “filhos de Amador Bueno da Veiga, comandante dos paulistas na coluna que vingou o massacre do Capão da Traição (…). Com a chegada de novos moradores, essa população primitiva foi, aos poucos, engolida e absorvida. Restaram alguns sobrenomes, como Veiga, Miranda e Portes del Rei, que relembravam os parentes de Amador Bueno. Mas a grande maioria dos habitantes ostentava sobrenomes oriundos do Vale do Paraíba.

Rua José Bonifácio, em 1970

Fundada em 1769, a cidade de Mogi Mirim prosperou inicialmente com sua economia agrícola, destacando-se pela produção de cana-de-açúcar, café e algodão. A cidade abrigava inúmeros alambiques, e sua produção era enviada em grandes quantidades ao porto de Santos. Contudo, a riqueza que brotava das plantações foi construída sobre o trabalho escravo e a exploração de indígenas e imigrantes, um fato frequentemente esquecido ou minimizado nas narrativas oficiais. Essas narrativas, muitas vezes falaciosas e questionáveis, chegam a ser impregnadas de um surrealismo que distorce a realidade. Houve até quem escrevesse que os senhores de escravos eram “benevolentes”, como se o ato de possuir pessoas pudesse ser considerado algo louvável. Foi nesta cidade, inclusive, que nasceu Joaquim Firmino de Araújo Cunha, delegado de polícia e abolicionista, brutalmente assassinado em 11 de fevereiro de 1888, apenas alguns meses antes da abolição da escravatura no Brasil. Talvez este trecho pareça um desvio do assunto principal (criando um “desvicionismo”, se me permitem o neologismo), mas é necessário lembrar que, em nossa história, tivemos herois que pagaram com a vida por defender os escravizados. Quando o Brasil finalmente aboliu a escravatura, Mogi Mirim, como muitas outras cidades, substituiu a mão de obra escrava por imigrantes europeus, principalmente italianos, sem, no entanto, mudar a lógica de exploração que sustentava a economia local. Aqui, gostaria de prestar uma homenagem à minha querida amiga e presidente do CEDOC, Carmen Bridi, que me ajudou a esclarecer algumas dúvidas sobre este trecho e que, de forma brilhante, ilustrou a história dos italianos em Mogi Mirim em seu livro.

Bicentenário de Mogi Mirim – 1969

O que raramente se menciona nas festividades de aniversário da cidade é que a urbanização de Mogi Mirim não acompanhou o progresso de maneira equitativa. Durante décadas, o crescimento da cidade foi desordenado, com investimentos públicos concentrados no centro e em áreas de interesse das elites, enquanto os bairros periféricos permaneceram à margem do desenvolvimento. Enquanto bairros como Santa Cruz, Vila Bianchi e Jardim Áurea receberam investimentos exemplares em iluminação, infraestrutura e urbanização, as regiões da zona leste (Vila Dias, Jardim do Lago, Parque das Laranjeiras) e da zona norte (Santa Luzia, Inocoop, Jardim Paulista, Santa Clara) continuaram desassistidas pelo poder público, sendo negligenciadas em favor da elite mogimiriana. Questões essenciais, como saneamento básico, saúde e educação de qualidade, demoraram a alcançar essas áreas, aprofundando o abismo entre o centro e a periferia. Além disso, as administrações municipais ao longo dos anos foram marcadas por episódios problemáticos, incluindo Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) sobre a merenda escolar, uniformes da Guarda Municipal e quiosques nas EMEIs, além de casos de má gestão dos recursos públicos, compra de votos, contas rejeitadas pelo legislativo, impeachment de vereador e até mesmo um ex-prefeito fugindo da polícia. Esses episódios prejudicaram ainda mais o desenvolvimento integral da cidade. Em muitos momentos, o poder público local priorizou políticas voltadas para o crescimento econômico, sem considerar o impacto social e ambiental dessas escolhas. Um exemplo é o distrito industrial, que foi desmatado para dar lugar às empresas, sem um planejamento adequado. A especulação imobiliária também contribuiu para o aumento da segregação espacial, empurrando a população de baixa renda para áreas carentes de infraestrutura e transporte – como as já mencionadas zonas leste e norte.

Hoje, Mogi Mirim tenta se reinventar como um centro regional moderno, mas enfrenta o desafio de conciliar tradição e inovação. Embora o progresso seja visível, ele acontece de maneira mais lenta do que o esperado. Por outro lado, caminhar pelo centro da cidade, especialmente pela Rua XV de Novembro, é, em muitos momentos, como revisitar um passado distante – um tempo em que as lojas estavam cheias, as ruas movimentadas e o comércio florescente. Agora, o cenário é diferente, com muitas portas fechadas, levando-nos a questionar: será que estamos realmente progredindo? O patrimônio histórico da cidade, apesar de ser reconhecido, não recebe o cuidado necessário, e o turismo, que poderia se transformar em uma importante fonte de renda, é subaproveitado. Ao mesmo tempo, a pressão por modernizar a infraestrutura, como estradas e redes de abastecimento, revela as fragilidades deixadas por décadas de administração pautada no imediatismo e sem uma visão de longo prazo. Diante dessa realidade, ao celebrarmos os 255 anos de Mogi Mirim, é essencial refletir sobre o legado que está sendo construído. A emancipação político-administrativa representou uma vitória para a cidade no século XVIII, mas nos séculos que se seguiram, será que essa autonomia trouxe benefícios reais para todos os habitantes? Ou, assim como no passado, o progresso continua sendo privilégio de poucos, enquanto muitos ainda lutam por acesso aos direitos mais básicos?

Que os próximos anos de Mogi Mirim sejam não apenas de celebração, mas de um compromisso renovado com a justiça social e o desenvolvimento sustentável. Parabéns, Mogi Mirim!

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